quarta-feira, novembro 30, 2011

pimenta

Lia, ainda há pouco, com o livro em seu colo enquanto comia um croissant bem duro, quase amanhecido, mas que cabia bem na fome do momento. O sabor que não existia era preenchido pelo molho de pimenta aguado que ela distribuia generosamente sobre o (não) recheio daquele croissant; sabia que ia dar errado e não estranhou quando num descuido de equilibrio (e descuidado havia sido deus que a criara meio torta) pingou uma gota de pimenta no seu livro, tão novinho. Seu primeiro impulso foi passar o dedo por cima, mas deteve-se antes de tocar a folha: espalhar a pimenta seria, então, a solução mais inteligente? Largou o croissant e elevou o livro até altura do nariz.Cheirou a pimenta. Que cheiro bom tem molho de pimenta misturado com literatura. Pensou em lamber o livro, mas tinha gente demais em volta e ninguém ia entender, ou iam e aí podia ser bem pior. Não lambeu, e começou a perceber que o circulo vermelho ia ficando com uma consistência cada vez menos líquida, e que a cor, antes de um vermelho vivo, ia tomando tons de alaranjado, que combinava com o pôr-do-sol tímido que começava a dar as caras. Se fechasse o livro, teria uma belíssima imagem, tipo aquelas borboletas que fazia com um monte de tinta na folha de sulfite dobrada em dois. Tinha perdido tanto tempo e tanta distração que a hora de ir já gritava por ela e a fome se escondera no meio daquelas páginas todas. Como num ato de coragem, passou o dedo sobre a pimenta, tentando espalhar o mínimo possível e antes que a rapidez do olhar de alguém lhe alcançasse, enfiou o dedo da boca. Que delícia que era pimenta com palavra, gostava tanto das duas e nunca tinha pensado na mistura. Passado o gosto, resolveu olhar o caminho que o desenho de pimenta fizera na página; poderia significar um milhão de coisas, ainda mais para alguém que se entrete tanto com apenas uma gota de pimenta, mas não. Acabou só  significando uma mancha amarelada (e de amarelo ela não gostava) indicando que algum dedo (e depois, confessa, uma língua) havia passado por ali...

2 comentários:

gipicles disse...

me deliciei de ler seu texto.

grazi shimizu disse...

sorri e senti o gosto da palavra ardendo na língua