quinta-feira, fevereiro 25, 2010



E você que não quer mais sofrer divide sua vida em contos. E assim, todos os dias você vai ter a graça do começar de novo e o êxtase do fim. Nem todos os contos são bons, nem todos os finais surpreendentes. Nem todos a gente quer que acabe…
Às vezes virar a página dói, porque muda a história, muda o enredo, mudam os personagens. Noutras vezes te alivia…Você não podia mais entrar tão fundo naquela história.
A única coisa que um conto tem em comum com outro é ser curto. Facilitando a sua vida e deixando por aí pequenos prazeres e pequenas dores. Nenhum conto é longo o suficiente para te envolver mais  do que três lágrimas e alguns beijos esquecidos. Ela que não queria mais sofrer decidiu dividir a vida em contos, achou que assim daria certo. Ela, que não queria mais sofrer, notou que sua vida estava divididas em capítulos de um mesmo romance em que ela odiava ser protagonista.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

A gente sempre tem dois caminhos

Maria cresceu muito antes das amigas da turma. Menstruou muito antes que as colegas e aos doze anos já sabia abotoar o soutien nas costas. Não gostava de matemática, mas tirava a nota mais alta porque tinha escolhido ser a melhor aluna. Diferente das outras que ainda não tinham peito, escolheu que não gostava de se sentir presa. E assim, quando todo mundo já tinha soutien, Maria decidiu que não ia mais usar. A gente sempre tem dois caminhos e para alguns é muito mais fácil escolher o mais difícil. Maria, míope, não conseguiu ver que tinha dois caminhos e além de ser mais fácil foi inevitável escolher o mais difícil. No caminho mais difícil as regras eram fáceis: nunca esconder o que sente e sempre dizer a verdade. O caminho difícil, em sua facilidade, era o cruzamento mais forte da dor e do prazer. Para Maria, então, dor e prazer necessariamente andariam juntos. E quando, por acaso do destino, se separassem, a dor perceberia que havia se perdido do prazer e viria logo em seguida procurá-lo, avisando pra Maria e para o resto do mundo que um não fica sem o outro. No caminho difícil outrora escolhido a gente não pode mais voltar atrás e reencontrar o caminho fácil. Primeiro, porque a dificuldade do caminho difícil é justamente não ter atalho. Segundo, porque há qualquer coisa de viciante em optar pelo caminho difícil. Maria ainda não sabe se é o prazer ou é a dor. Talvez sejam os dois. Hoje ela entende: a gente sempre tem dois caminhos, mas só uma escolha.

domingo, fevereiro 21, 2010

Deitada ali só pensava em três coisas: que precisava descansar; que aquele cochilo tinha tempo limitado e que logo mais ia anoitecer. E de noite tudo fica diferente…
Conforme o sol descia e o céu azul ia mudando de tom, seu corpo em posição fetal ia se contorcendo, como se conforme o calor do sol diminuísse, seu corpo procurasse a única coisa passível de abraço naquele lugar: ele mesmo.
Assim, agarrou suas próprias pernas e dormiu com os olhos voltados para o joelho. Se aqueles olhos, que funcionavam como um oásis no deserto de olheiras, abrissem teriam como primeira vista a cicatriz do joelho da garota arteira que um ela dia tinha sido e da mulher exausta que, naquele momento, precisava de um cochilo, ainda que limitado.  A cicatriz insistia em lembrá-la da verdade que ela teimava em esquecer: que não só para o sol o tempo passa e o calor, necessariamente, diminui.
Entretanto, diferente do sol, ela não encontrava naqueles travesseiros nenhum consolo macio que lembrasse alguma nuvem. Nada a rodeava além do sono e do cansaço premeditado e típico dessa infeliz espécie humana que insiste em dormir pensando na hora de acordar.
Acordaria, evidentemente. Provavelmente com frio, certamente sem voz, enrolada com um pouco de dor nos próprios braços que também diferentes dos raios do sol não alcançavam muito mais que ela mesma…

terça-feira, fevereiro 16, 2010

É verdade que tem hora que cai bem o desrespeito. Cai bem porque ofende menos que o silêncio e incomoda tanto quanto a sua cara fitando a minha, dizendo: "minha cara..." e não sabendo, no fundo, o que queria dizer. Eu prefiro o desrespeito gritado em surdas palavras do que meias palavras que tendem a palavra alguma. É do desrespeito que as verdades se alimentam e verdade precisa, no fim, de força para acreditar-se verdade e atravessar o meu corpo para sair da minha boca. Eu alimento as minhas verdades diariamente. Eu as deixo fortes e prontas para superar qualquer ponta de insegurança que me desça goela abaixo. Elas sobem sobre tudo e deslizam pela minha língua lado a lado ao meu último gole de cerveja. Bebo verdades para depois vomitá-las. E eu sei que no fim elas são mãe e pai do meu desrespeito e filhas perdidas da minha vontade.