quarta-feira, novembro 30, 2011

pimenta

Lia, ainda há pouco, com o livro em seu colo enquanto comia um croissant bem duro, quase amanhecido, mas que cabia bem na fome do momento. O sabor que não existia era preenchido pelo molho de pimenta aguado que ela distribuia generosamente sobre o (não) recheio daquele croissant; sabia que ia dar errado e não estranhou quando num descuido de equilibrio (e descuidado havia sido deus que a criara meio torta) pingou uma gota de pimenta no seu livro, tão novinho. Seu primeiro impulso foi passar o dedo por cima, mas deteve-se antes de tocar a folha: espalhar a pimenta seria, então, a solução mais inteligente? Largou o croissant e elevou o livro até altura do nariz.Cheirou a pimenta. Que cheiro bom tem molho de pimenta misturado com literatura. Pensou em lamber o livro, mas tinha gente demais em volta e ninguém ia entender, ou iam e aí podia ser bem pior. Não lambeu, e começou a perceber que o circulo vermelho ia ficando com uma consistência cada vez menos líquida, e que a cor, antes de um vermelho vivo, ia tomando tons de alaranjado, que combinava com o pôr-do-sol tímido que começava a dar as caras. Se fechasse o livro, teria uma belíssima imagem, tipo aquelas borboletas que fazia com um monte de tinta na folha de sulfite dobrada em dois. Tinha perdido tanto tempo e tanta distração que a hora de ir já gritava por ela e a fome se escondera no meio daquelas páginas todas. Como num ato de coragem, passou o dedo sobre a pimenta, tentando espalhar o mínimo possível e antes que a rapidez do olhar de alguém lhe alcançasse, enfiou o dedo da boca. Que delícia que era pimenta com palavra, gostava tanto das duas e nunca tinha pensado na mistura. Passado o gosto, resolveu olhar o caminho que o desenho de pimenta fizera na página; poderia significar um milhão de coisas, ainda mais para alguém que se entrete tanto com apenas uma gota de pimenta, mas não. Acabou só  significando uma mancha amarelada (e de amarelo ela não gostava) indicando que algum dedo (e depois, confessa, uma língua) havia passado por ali...

quarta-feira, novembro 23, 2011

Dezessete noites - ela contou - há exatas dezessete noites não se emociona mais, nem desmancha a boca em sorriso quando ouve aquela combinação de notas que anunciavam suas iniciais. Há dezessete noites divide sua cama com outros sonhos, que não os seus; outros desejos, não os dela. Há dezessete noites prefere não acordar com um sorriso, nem dormir misturando aquele tanto de lágrima com mais um tanto de desespero. Há dezessete noites conta os dias que parou de contar e acha muito mais gentil e tranquilo o coração vazio, até um pouco empoeirado desde que você foi embora. Resolveu, há dezessete dias e dezessete noites, que não lhe escreveria. Você ri porque sabe que essa decisão não foi levada a cabo (e nunca poderia ser), mas no fundo, naquele fundo perdido e surrado, você também sabe que as palavras ficaram vazias - e só assim poderiam ser - as palavras acabam inevitavelmente escritas, mas vazias, porque você não a emociona mais.

domingo, novembro 06, 2011

tava ali deitada vendo um programa de super-heróis. A musiquinha do Batman sempre a arrepiou inteira e se pudesse materializar alguém  (perdoa ela, Shiryu?) seria ele, definitivamente. Depois da citação do Brecht, da questão psicológica e de toda discussão acerca da aura do herói, a única coisa que podia pensar é que o seu herói predileto não a salvaria de nada, pelo contrário. Acho que ela gosta mesmo é do herói atormentado e politicamente incorreto que o Batman sempre foi, pra terminar de foder com com qualquer sobra de sanidade que ainda tivesse. Ela fica tentando, de um jeito quase ridículo de tão sistemático, entender como é possível  pensar tanto em coisas improváveis e ter prazer com seu próprio desespero. Ainda que odiasse ser ansiosa, alimentava a ansiedade como quem engorda um animal para o abate: quando chegasse a hora, lembraria das facas dele e cortaria pedaço por pedaço essa ansiedade e que ela sangrasse o desejo e cozinhasse em fogo brando até o momento em que fosse recolhido em um prato e servido, ainda fervendo, pra si própria. Sacode a cabeça tentando lembrar em que momento esqueceu do Batman e pensou em facas, já que essas nunca foram as suas armas prediletas. Lembrou de imediato o que ligava os dois fatos, pensou nas mãos, no perdido beijo no colo e dormiu, com um sorriso (joker as can be) no rosto.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Acho graça quando você me acha especial. Garota classe média, né, tão diferente e tão igual a maioria. Você gosta das minhas tatuagens, mas não nega que aquela, ali no ombro, sempre fica um pouco clichê. Pior só uma frase em Latim. Tão típico da garota de humanas de universidade pública, né. Essa que protesta contra a PM na usp e gasta metade do salário lá na Arezzo (justo a Arezzo, caralho!). Você acha muito firmeza que eu bebo bem mais que você, mas no fundo seu sonho era que eu pedisse uma "Sakerita de morango, bem levinha, tá?" enquanto você, e não eu, se acabaria no chopp. Você diz que não curte mulher magrela e que eu fico linda com as minhas curvas, mas ah, uns 5 kg a menos me deixariam ideal, não é não? Ontem você disse que adora meu batom vermelho, que me deixa sexy e imponente, mas eu me lembro de te ouvir dizer que aquela rosa claro combina mais com a minha pele. Com a minha pele ou com a sua moral? Eu não lembro. Eu mesma às vezes não tenho certeza. Quantas vezes você suspirou pelo meu cabelo cacheado e quantas outras vezes  você não quis me contar, mas poxa, uma chapinha me caia tão bem! No fundo você sabe que quando eu vou toda animada e fitness pra academia eu, na verdade, trocaria cada minuto naquela esteira por uma cirurgia que diminuisse a minha bunda. E aquele sorriso fazendo bíceps é só brincadeira, ou devaneio. Tava pensando na janta que eu faria: puxa, como te agrada esse meu lado retrô, cozinheira e boa moça, a professorinha de português. Especialmente quando eu uso o avental com meu vestido curto e você não consegue diferenciar o que, de fato, tapa as minhas pernas, que - a gente sempre soube - você preferia que fossem menos à mostra. Tem dias que você prefere meu lado garota bem sucedida, a estudante de crítica literária, aquela ali, com um blog muito interessante sobre sexualidade. Que você não vai divulgar pros seus amigos, afinal, você não quer ver minha foto de lingerie passeando por ai, oras! Tô cansada de você, bom senso. E de você, decência... Agora eu escuto a música do Chico, droga, por mais que eu discuta as políticas, sempre foram as românticas que me puxaram quase pra dentro da voz rouca dele. Voz rouca, você sabe que eu me desfaria dos meus livros prediletos pra ter uma voz menos rouca, mais aveludada... Mas eu não ia poder dizer que tenho voz tele-sexo, e perderia as piadas de travesti. Você ri da minha cara porque eu me divido entre esse jeito muito prático de mandar as coisas acontecerem e aquele quase infantil de levantar os olhos e pedir, quase implorando, pra você apagar luz. É que às vezes, sabe, eu não quero ver, que no fundo, bem no fundo, eu sou exatamente aquilo que eu planejava ser.