Olhava para o sapato novo buscando um bom motivo, naquele sapato que ainda machucava seus dedos, para estar assim triste, assim feia. Estava convencida que beleza era questão de estado de espírito, e sabia que as suas olheiras denunciariam se a noite tinha sido molhada por álcool ou por lágrimas. Forçava sorrir, mas nem sempre saia aquele sorriso cheio de dentes. O sorriso meio forçado podia ser facilmente confundido com uma radiografia para o dentista, que criticaria sua mordida. Ela nem ligava, os dentes sempre fizeram bem a sua função e não deixaram qualquer pedaço de carne inteiro, ou pescoço abandonado. Que pena, não era a tristeza que lhe perturbava - se fosse, a certeza de morrer de dor e de amores tiraria do peito o desespero do marasmo. Era um pouco de apatia, de coração vazio. Há muito tempo não se acostumara a sentir o nada. E que coisa sem graça é sentir coisa alguma. Tinha sono, que droga. Deu-lhe saudade da insônia, da dificuldade de dividir seu espaço, da ansiedade do dia seguinte. Não ia acontecer nada no dia seguinte, tudo bem. Tinha bons livros, tinha bons amigos, tinha a sua cerveja. Em algum momento isso tudo junto voltaria a ser furor - que não demorasse, há muito tinha aprendido que sem nós, nenhum eu se diverte.
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