Entrou em seu quarto na posição que agora lhe cabia: de estranha. Pediu licença e foi discreta, assentando calmamente a bolsa sobre a mesa, para evitar que fizesse muito alarde naquele espaço arrumadinho que ela acabava de conhecer. Viu um casaco de renda sobre a mesa, embaixo da calça jeans dele. Achou que o coração ia saltar pela boca no mesmo instante que ela gritasse: de quem é esse casaco? Era de bom gosto, a renda; de péssimo, o sentimento. Engoliu a seco e esboçou um sorriso falso, que ele conhecia bem: infelizmente, era o máximo que ela conseguia fingir, afinal, podia racionalmente entender que ele tivesse um casaco e a dona de um casaco em cima da mesa - ou da cama, coisa que preferia nem pensar - mas não podia obrigar seu coração a passar tranquilamente por esse fardo. A garganta doeu de segurar o grito, a concentração foi embora, como ela queria ir, mas não foi. Resistiu bravamente e trabalhou, frente ao casaco que, a cada segundo, olhava pra ela com desdém que só uma renda pode olhar. Resolveu dormir pra esquecer, mas não cabia direito em sua cama, havia um espaço que lhe oprimia, talvez porque o casaco ainda estava no mesmo metro quadrado que ela. Dormiu, enfim, e sonhou com o maldito casaco. Se aquelas rendas se desmembrasse em fios, virariam facilmente uma corda digna de enforcamento, estava provado que casacos de renda também pode sufocar. Além de lidar com o sufoco de tolerar aquele maldito casaco, ainda tinha que ser gentil com ele, já que nenhuma culpa ele tinha. Não eram mais namorados, tentava repetir tantas vezes quantos pontos de crochê contava no casaco. Foi uma tarde inteira de superação e quando conseguiu convencê-lo a mudar de cômodo, e respirar o ar puro e livre do casaco, ouviu lá ao fundo a quarta voz (não a dela, nem a dele, nem a do casaco) perguntar sobre um tal casaco de renda. Ele não sabia, ela sim. Respondeu: está embaixo da calça jeans, como se tivesse dito: Obrigada, quarta voz, por me tirar esse fardo. E o casaco se foi, sem qualquer briga. Teve orgulho dela, dele e até do casaco que, com a sutileza e fragilidade da renda não se desfez em fios cortados, nem com o olhar mais odioso dela...
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